SINDESP

Gênio de Outros Tempos.

Hugo Martins

A língua portuguesa é pródiga em poemas que nos arrebatam a alma. Deles há que sempre merecem nossa revisita, ou pelo lirismo ou pela excelsitude da linguagem ou em face do tom ternamente elegíaco, ou mesmo pelo gosto épico, que desperta no leitor sentimentos nobres, que o maravilham pelo gosto estético. A linguagem desesperada e catártica de Florbela Espanca; a emoção provinda dos sonetos camonianos sobre o amor; a correção formal de Raimundo Correia; a propriedade lingüística de Bilac; o tom filosófico da obra pessoana; a tristeza vaga que dimana de Bandeira, tudo é motivo de encanto e embevecimento…

Há, porém, um poema em língua portuguesa por que tenho especial apreço. Trata-se de O Navio Negreiro – Tragédia no Mar – do vate baiano Antônio de Castro Alves. Dele falo porque me pediram opinião sobre o assunto poesia. Tenho preferência por vários poetas. Afinal eles tornam a vida mais bela e nos fazem pensar na condição humana. Mas o criador de Espumas Flutuantes, além de extremamente lírico em vários poemas, n´O Navio Negreiro nos toma pelo tom épico do assunto e pela metaforização altissonante da linguagem. Nesse poema, há oito versos, considerados pela Academia Brasileira de Letras, numa espécie de votação para a escolha dos mais belos versos da língua, os mais belos entre todos. Está na 6º parte do poema; é uma saudação à bandeira nacional, que o poeta lamenta ter nosso pavilhão servido para encobrir “tanta infâmia e cobardia”. Referia-se ele à cumplicidade muda do povo brasileiro com o tráfico negreiro. Assim declama o poeta:

“Auriverde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do céu encerra,
E as promessas divinas da esperança…
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…”

Em resumo, todo o poema se divide em seis partes. Na primeira, o poeta descreve o ambiente em que se vai dar a tragédia. Aqui, o poeta debuxa o palco, que se acha entroncado em duas imensidades; o firmamento e o mar. Na segunda parte, apresenta os marinheiros dos quatro mundos; o espanhol, o italiano, o francês, o inglês e o heleno. Na terceira, recorre ao albatroz, “águia do oceano”, pedindo-lhe emprestados o olhar e as asas, alegando que o olhar humano não pode acompanhar a marcha do navio negreiro, que “semelha no mar doudo cometa.” Na quarta parte, vemos a tragédia que ocorre no tombadilho. Homens, mulheres, moças e crianças, todos prosternados ao estalar do chicote e ao riso da turba. Na quinta parte, o poema recorre a Deus, aos astros, à noite, à tempestade, ao raio e ao trovão a fim de que respondam quem eram aqueles desgraçados. Todos se mantêm calados e cúmplices. Por fim, recorre à poesia (“Musa audaz e libérrima”). Essa vai dizer quem eram os desgraçados, que tanta dor impingem ao vate.

Vem, então, um desfilar de personagens, “ontem livres, hoje míseros escravos” A maior irrisão, porém, revela-se no momento em que o poeta diz que “não são livres nem mesmo para morrer”. A sexta parte fecha-se com a indignação do poeta, que deblatera contra o povo que empresta a bandeira para cobrir aquela atrocidade e “deixa-a transformar-se em manto impuro de bacante fria”.

Em seguida, num transe de viva poeticidade, clama o poeta; “Musa! Chora, chora tanto, que o pavilhão se lave no teu pranto…” Por fim, saúda a bandeira com os versos supratranscritos. Invoca, ao final, os heróis do Novo Mundo a eles implorando: Andrada, “arranca esse pendão dos ares”; Colombo “fecha as portas de teus mares!”

Poesia da melhor qualidade e engajada numa causa social e humana, como chamam os franceses “littérature engagée.”

Poeta genial. Morreu aos vinte e quatro anos. Não jogava futebol. Não era astro global. Não era modelo. Nem padecia da secular estupidez por que passa a humanidade nesses tempos de crise…

Voilà…